sexta-feira, 13 de abril de 2012

sobre o Autorretrato

Construir o 'eu' autobiográfico

Suspeito que a estratégia do cérebro para a construção do eu autobiográfico seja a seguinte. Em primeiro lugar serão agrupados conjuntos substanciais de recordações biográficas características, para que cada um possa ser tratado prontamente como um objecto individual. Cada um desses objectos pode modificar o proto-eu e produzir a sua pulsação de eu nuclear, com os respectivos sentimentos de conhecimento e o consequente realce de objecto que se segue. Em segundo lugar, como os objectos nas nossas biografias são tão numerosos, o cérebro precisa de dispositivos capazes de coordenar a evocação de memórias, apresentá-las ao proto-eu para a devida interacção e manter os resultados dessa interacção num padrão coerente ligado aos objectos causativos. Não se trata de um problema banal. Com efeito os níveis complexos de um eu autobiográfico - aqueles que, por exemplo, incluem aspectos sociais - englobam tantos objectos biográficos que exigem numerosos pulsos de eu nuclear. Em consequência, a edificação do eu autobiográfico requer um aparelho neuronal capaz de obter múltiplos pulsos do eu nuclear, numa abertura temporal limitada, para um número substancial de componentes. Esse aparelho tem ainda de manter os resultados de todo este processo temporariamente. De um ponto de vista neural, o processo de coordenação é especialmente complicado pelo facto de as imagens que constituem uma autobiografia serem em grande medida implementadas nos espaços imagéticos do córtex cerebral, baseadas na recordação orquestrada a partir de córtices disposicionais. Para poderem ser tornadas conscientes, essas imagens têm, no entanto, de interagir com o mecanismo do proto-eu, o qual, como já vimos,se situa, em grande parte, ao nível do tronco cerebral. A construção de um eu autobiográfico exige mecanismos de coordenação muito complexos, algo que a construção do eu nuclear, de um modo geral, dispensa. À maneira de hipótese de trabalho, podemos então dizer que a construção do eu autobiográfico depende de dois mecanismos combinados. O primeiro está subordinado ao mecanismo do eu nuclear e garante que cada conjunto de memórias biográficas seja tratado como um objecto e tornado consciente num pulso do eu nuclear. O segundo leva a cabo uma operação de coordenação à escala cerebral que inclui os seguintes passos: 1) certos conteúdos são evocados a partir da memória e exibidos como imagens; 2) permite-se às imagens que interajam de forma ordeira com outro sistema algures no cérebro, nomeadamente o proto-eu; 3) os resultados dessa interacção são mantidos de forma coerente durante um breve período de tempo. Nas estruturas envolvidas na construção do eu autobiográfico incluem-se todas as necessárias ao eu nuclear, no tronco cerebral, no tálamo e no córtex cerebral, e também as estruturas ligadas aos mecanismos de coordenação abordados a seguir." António Damásio em: O livro da consciência. Pode parecer ainda mais confuso e complexo, mas o ser humano é confuso e complexo. Aliás através deste grau de complexidade emerge um enigma muito particular, que nos move a procurarmos cada vez mais nós próprios. Para entender melhor: "Existem três patamares do “eu”, que correspondem a outros tantos patamares de consciência, diz António Damásio: o proto-eu, o eu nuclear e o eu autobiográfico. Proto-eu é uma colecção de imagens (de padrões de activação neural) que mapeiam os estados físicos e fi siológicos do corpo a cada instante, dando origem àquilo que Damásio chama “sentimentos primordiais”, indispensáveis à regulação e à manutenção da vida. O proto-eu surge no tronco cerebral, a parte mais “arcaica” do cérebro em termos evolutivos — e não é ainda consciente. Os peixes, até os insectos, possuem provavelmente um “proto-eu”. O nível de eu seguinte, o eu nuclear, surge de cada vez que um objecto no mundo exterior interage com o protoeu. Gera-se assim uma sequência de imagens que podem ser visuais, auditivas, sentimentos primordiais, etc., e que descrevem a relação do organismo com esse objecto. O eu nuclear dá origem à consciência nuclear, um estado de consciência de base que é a cada instante renovado pelas alterações que se verificam no proto-eu. A consciência nuclear é assim um fluxo ininterrupto de imagens de todo o tipo, vindas do interior e do exterior do corpo. É uma consciência apenas do “aqui e agora”, quase sem memória do passado e sem qualquer antecipação do futuro. Os mamíferos (sem dúvida), os répteis e as aves (talvez), diz António Damásio, possuem apenas este nível de consciência nuclear. O mesmo acontece com certos doentes neurológicos. O último patamar da consciência — o estado de consciência plena, tal como os seres humanos normalmente a conhecemos e a sentimos quando estamos acordados, corresponde ao eu autobiográfico. Surge quando objectos da nossa biografia geram impulsos de eu nuclear, criando um autêntico filme da nossa vida. É essa consciência autobiográfica que nos confere a nossa identidade, que faz com que saibamos que somos nós os donos do nosso organismo. Obviamente, requer o acesso à nossa memória, não apenas para sabermos quem somos mas também para nos projectarmos no futuro. "

contribuição de Óscar Silva (membro do Sr.João) 
no grupo do facebook projeto Kurt Cobain

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